"Escritores da Liberdade" ou liberdade dos escritores?
Cinema

"Escritores da Liberdade" ou liberdade dos escritores?



"Escritores da Liberdade" ou liberdade dos escritores?

Nildo Viana

O filme Escritores da Liberdade (Richard L, EUA, 2007) é, a princípio, apenas mais um filme norte-americano sobre educação, no qual o mestre dedica sua vida e consegue reverter o quadro caótico da situação escolar existente. Claro que existem filmes diferentes, mas quase todos filmes norte-americanos que abordam a questão escolar no caso das classes desprivilegiadas, desde Sementes de Violência (Richard Brooks, EUA, 1955), passando por Ao Mestre com Carinho (James Clavell, EUA, 1965), entre outros, até chegar ao mais recentes, possuem elementos narrativos semelhantes e repetitivo: O quadro social pré-estabelecido (uma situação escolar caótica, estudantes pobres e marginalizados, conflitos raciais, étnicos e outros, administração escolar pouco envolvida com mudanças e alteração da situação) é rompido com a chegada de um professor abnegado, cujo sentido da vida é a luta pela alteração deste quadro, mesmo custando conflitos familiares, divórcio, etc., e através de uma prática diferenciada junto aos alunos e sem apoio da instituição, consegue resultados favoráveis e realizar a mudança, terminado, como não poderia deixar de ser, em um hapy end holiwoodiano.







O messianismo pedagógico é o ponto forte e como outros filmes semelhantes, este também é baseado em "fatos reais". No entanto, a arte imita a vida de forma muito imperfeita, sendo mais manifestação de concepções, valores, sentimentos, etc., do que retrato fiel da realidade. Este é o caso de Escritores da Liberdade. A professora consegue reverter o quadro através de um forte sacrifício pessoal (teve que trabalhar em outros dois empregos para ter dinheiro para comprar livros e cadernos para os alunos, divórcio, etc.) e isso só é possível se for o sentido da vida para tal professor. Obviamente que a dedicação da professora é louvável, bem como sua ação e os resultados individuais conseguidos. Porém, isso não serve de modelo e de inspiração, não só por causa dos valores, concepções, sentimentos por detrás da prática da referida professora (e do filme), mas também porque os resultados atingem apenas determinadas pessoas, pois para se concretizar em grande escala não só seria necessário outras professoras abnegadas e que fazem da prática educacional o sentido da sua vida, como também ter apoio institucional, políticas educacionais estatais, etc. Nem todos dispostos ao mesmo sacrifício (por exemplo, trabalhar em dois empregos para comprar materiais para alunos, pois é necessário, não só estar disposto a isto como também conseguir tal emprego e não se pode abstrair que a referida professora no filme é oriunda das classes privilegiadas - possuindo acesso a determinado "capital cultural", como diria Bourdieu, além do vil metal - e tem apoio do pai, um juiz, que pode, por exemplo, pagar jantar para os alunos devido seus altos rendimentos). O caso é ainda mais difícil em países como o Brasil, onde o salário do professor é insuficiente para ele sobreviver e além disso não possui recursos, condições e incentivo para formação/qualificação, etc.

Os resultados alcançados, na situação extraordinária apresentada pelo filme é o benefício de apenas uma turma, na qual alunos carentes e que mal terminariam o curso (equivalente ao ensino médio no Brasil) e chegam até a universidade. As outras turmas, as outras escolas, ou seja, milhões de outros, não terão a mesma oportunidade. Logo, não é receita aplicável ao sistema de ensino em sua totalidade. O problema não está na experiência em si e sim em tomá-lo como modelo, o que seria irrealista. Além disso, seus resultados são modestos, atingindo um número limitado de alunos, e que tem por detrás de si determinados ideologemas e valores, entre os quais o messianismo pedagógico, uma concepção individualista de intervenção (a da professora) e da solução de problemas (dos alunos), uma politização limitada e que não ultrapassa o nível da consciência burguesa e não aponta para a transformação social.

Assim, os "escritores da liberdade", escrevem sem amarras, mas também sem uma liberdade autêntica. Estão "livres de" mas não "livres para" (Bloch, Fromm). São indivíduos que são formados socialmente nas classes desprivilegiadas, vivendo em condições de vida precárias e perpassada por diversos conflitos (raciais, étnicos, de classe, etc.), um mundo de violência e criminalidade, e a liberdade que lhes foi oferecida foi a de escrever sobre seu cotidiano (e não entendê-lo, explicá-lo, ver a possiblidade de transformá-lo não apenas em casos individuais ou de um grupo, como se fosse uma "família", sempre excludente dos demais) e cujo conteúdo, no fundo, era a cultura burguesa, que pode ser útil para mostrar o perigo da intolerância e preconceito, mas incapaz de mostrar suas determinações, sua razão de ser, sua base social, que, mesmo um pequeno grupo por via meramente educacional se transforma, se mantém por outros milhões não terem a mesma oportunidade. Museu, restaurante, ascensão social, uma bela viagem do mundo lumpemproletário ao mundo das classes auxiliares da burguesia. Essa é a viagem do filme, daí seus limites, que são os limites intransponíveis da consciência burguesa. Mais uma vez: "ao mestre com carinho". E mais uma vez a afirmação de Marx: "quem educa o educador?" e quem precisa de mestre é porque ainda não conquistou a liberdade. Logo, os escritores da liberdade precisariam de liberdade para escrever e isso não se faz numa sala de aula ou com filantropia e sim na luta, dentro e fora da sala, com ou sem mestre, mas quando atinge um determinado grau, sem mestre e sem carinho pelo mestre, mas sim compartilhamento da luta por seres humanos iguais, sem sentimentos constituídos por relações hierárquicas e por sentimentos hierarquizados, mas sim sentimentos recíprocos por relações humanizadas, companheiros de luta.



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