Cinema
"I Am Legend" por Ricardo Clara
Talvez o mais improvável não blockbuster do ano, o filme comercial que não o é, uma abordagem de autor que não possui essa concepção. Um orçamento estrondoso (a rondar os 90 milhões de euros) assente numa visão centrada numa única personagem maniaco-depressiva.
Robert Neville (Will Smith) é um cientista e militar mas, acima de tudo, é um homem só. Literalmente, não fosse ser o putativo último homem na Terra. Tudo começou na descoberta e teste de uma vacina que curaria o cancro, a qual acabou por ter efeitos degenerativos nas cobaias humanas, as quais começaram a progredir para um estado de raiva, transformando-se numa espécie de zombies vampirescos que não podem estar em contacto com a luz do dia. De entre os que morreram aos que se transformaram, sobra um número muito pequeno de humanos no planeta azul.
Neville vive os dias dividido entre a tentativa de encontrar a solução para a praga, na sua Nova Iorque, e a procura de comida, esperando, claro está, que surja mais algum sobrevivente. Acompanhado de uma cadela, Sam, o último ponto de contacto com a sua família, luta para que não seja morto pelos infectados.
"I Am Legend" / "Eu Sou A Lenda", de Francis Lawrence ("Constantine", 2005), é a terceira adaptação do romance homónimo de Richard Matheson, datado de 1954, depois do original de Ubaldo de 1964, e "The Omega Man" (Boris Sagal, 1971), e resulta num estrondoso acto falhado. Não nos iludamos: toda a abordagem conceptual, vista nos primeiros dois terços do filme apontavam para uma das melhores obras estreadas no ano, e uma a recordar, dentro do género, dos anos recentes. Acontece que, quando se quer fazer cinema pragmático com necessidades de bilheteira (ou usando o aforismo popular de «agradar a Gregos e a Troianos), a linha que separa ambos consegue ser ténue, mas a tentação de resvalar para a vertente errada é enorme. Lawrence seguiu-a.
Mas vamos por partes. O argumento é linear, a história é simples, o que permite várias abordagens e perspectivas dos códigos linguísticos. Aliás, um filme assente numa única personagem vive, quase essencialmente, dessa mesma personagem. O que a rodeia (a Nova Iorque deserta, as criaturas animalescas) não pode tentar-se sobrepor à importância dessa centralidade. E Robert Neville é uma personagem que oscila durante todo o filme - pois ganha e perde profundidade com enorme facilidade. Mas quando a tem, exerce-a de forma brusca - um cientista, ateu (como o é, aliás, o filme), sentado na ténue linha entre a sanidade e a loucura, e que parece procurar uma razão para viver - como disse Will Smith, "pega-se num homem, rouba-se-lhe tudo, e será que ele encontra uma razão para continuar a viver?". É um indivíduo que representa uma falange da sociedade actual, daqueles que assenta na fé religiosa um animus vivendi e que, de repente, se vê amputado dessa base e começa a questionar as suas próprias estruturas pessoais e mentais. Neville consegue ser uma imagem de muitos de nós, actualmente.
Peca (Smith) pela instabilidade, quer da profundidade da personagem, quer pela suas próprias limitações enquanto actor. Diluindo-se essas premissas quando se entra na fase de justificação monetária e se derruba o edifício moral da película e se penetra em mais um mundo de mortos-vivos e vampiros.
Reside aqui o grande falhanço de "I Am Legend": um filme que o era e deixou de acreditar que podia ser.
| Título Original: "I Am Legend" (EUA, 2007) Realização: Francis Lawrence Argumento: Richard Matheson (romance), Mark Protosevich e Akiva Goldsman Intérpretes: Will Smith e Alice Braga Fotografia: Andrew Lesnie Música: James Newton Howard Género: Ficção Científica / Terror / Drama Duração: 101 min. Sítio Oficial: http://iamlegend.warnerbros.com |
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