Crítica: Amor Sublime Amor (trilha sonora)
Cinema

Crítica: Amor Sublime Amor (trilha sonora)



Todos já ouvimos falar da história de Romeu e Julieta, não? A história é antiga; ela circula desde o início da era cristã via as Metamorfoses de Ovídio, mas foi o Romeu e Julieta do dramaturgo William Shakespeare (1564-1616) que deu a sua forma final. Era uma vez na Itália renascentista onde duas famílias rivais renovam continuamente o seu feudo: os Montecchio e os Cappuleto. O príncipe-regente da cidade, cansado dessa briga, ameaça de morte aquele que quebrar a paz imposta por ele. Depois desse decreto o Conde Paris, parente do príncipe, pede a mão da filha do Lorde Cappuleto, Julieta, em casamento. Enquanto isso Romeu, filho do patriarca dos Montecchio, está deprimido: sofre de amor por uma das sobrinhas de Cappuleto. Para espairecer, Romeu e seus primos entram de penetra num baile de máscaras planejado para aproximar o Conde de Julieta. É aí onde o fortuito acontece: Romeu e Julieta se avistam e é amor à primeira vista. As flechadas de cupido acabam sendo mortais, e essa paixão adolescente terá consequências trágicas para as duas famílias. 

Na década de 1940, o coreógrafo Jerome Robbins leu essa história e pensou: em vez da distante Verona de 500 anos atrás, que tal remodelar esse conflito para a realidade crua das ruas de Nova Iorque, no Upper West Side de Manhattan, rude lar de delinquentes envolvidos em disputas territoriais? Gangues tomariam o lugar de famílias rivais, uma de porto-riquenhos (os Sharks) e uma de ?americanos? (na verdade, imigrantes poloneses), os Jets. Farto de tanta porradaria entre as duas facções, o policial Krupke exige uma trégua. Riff, líder dos Jets, propõe para Bernando, chefe dos Sharks, um ?conselho de guerra? para acertar de uma vez por todas as suas diferenças. Essa reunião vai acontecer durante um baile atendido pelas duas gangues. É nele que Maria, irmã de Bernando, se apaixona por Tony, o melhor amigo de Riff, e vice-versa. Eles tentam viver esse amor impossível a qualquer custo, mas acaba também em tragédia.

Quando a temporada de Amor Sublime Amor estreou em Broadway, no dia 26 de setembro de 1957, o musical foi um sucesso (mais de 700 apresentações). A sua passagem por Londres foi melhor ainda ? mil e tantas performances. Apesar disso, Amor Sublime Amor não detinha o status de clássico que conserva hoje. Talvez os temas fossem muito fortes. Tínhamos ali um show da Broadway ? tradicionalmente uma avenida com um circuito de espetáculos especializados em vazão escapista ? onde se encenava ódio racial, assassinato, uma tentativa de estupro e os malogros da pobreza material. Sem dúvida a temática pesada alienou uma parte do público e crítica. Ou então foi a música, à frente do seu tempo. O criador da Columbia Records, William S. Paley, achou que as canções eram difíceis de cantar, que tinham letras demais, ou que lhe faltavam melodias memoráveis. Nos Tonys (o ?Oscar? do teatro americano) Amor Sublime Amor perdeu na maioria das categorias para o Vendedor de Ilusões (outro clássico da Broadway). Foi só depois da adaptação Amor Sublime Amor para o cinema onde ele assumiu o status que tem hoje. O Amor Sublime Amor de 1961 foi um dos únicos filmes a ganhar dez Oscars (das 11 indicações que recebeu).

Amor Sublime Amor reuniu um pool de talentos excepcional ? e com alguns estreantes nas suas respectivas posições. Temos o experiente Jerome Robbins na direção e coreografia do espetáculo; Arthur Laurentis, na confecção de seu primeiro libreto; e o outro neófito, Stephen Sondheim, cuidando das letras. Sondheim era pupilo de Oscar Hammerstein II que, junto a Richard Rodgers, formaram a dupla que deu ao mundo Oklahoma! (1955), O Rei e Eu (1956), Ao Sul do Pacífico (1958) e, claro, A Noviça Rebelde (1965). E a trilha sonora? Ficou a cargo do pianista, maestro, educador e compositor Leonard Bernstein (1918-1990).

A mente musical por trás de Amor Sublime Amor é considerado um dos maiores maestros do século XX. A sua batuta conduziu gravações que, suas vendas consideradas, amontoaram aproximadamente 30 milhões de cópias ao redor do mundo. ?Lenny?, como era conhecido pelos íntimos, revitalizou o repertório do compositor austríaco Gustav Mahler (1860-1911) para os tempos pós-modernos e imortalizou em fita magnética versões indispensáveis de Appalachian Spring de Aaron Copland, Rhapsody in Blue de George Gershwin e a Sinfonia nº2 de Charles Ives, abrindo o espaço nos Carnegie Halls para o repertório erudito de sua terra.

Bernstein era um ávido defensor do ecletismo musical. Do cânone erudito, incorporou o estilo dos seus compositores favoritos ? Mahler, Copland, Gershwin ? e adicionou ao know-how que adquiriu tocando na banda de jazz de sua juventude, para sustentar as suas aulas de piano. Bernstein também gostava de música pop: dez anos após a estreia de Amor Sublime Amor ele teceu, num programa de TV, elogios rasgados aos Beatles por incorporem ragas indianos, quartetos de cordas e tempos compostos na sua linguagem musical. A adesão apaixonada por essa mentalidade inclusivista foi a responsável pelo elevado o nível de dissonância e complexidade rítmica de Amor Sublime Amor, que demoliu (e reinventou) convenções sacrossantas da Broadway.

Um exemplo dessa abordagem inclusiva foi como Bernstein incorporou ritmos latinos tipo o Mambo, Huapango e Cha-Cha-Cha na cena da dança de salão de Amor Sublime Amor, onde os Jets e os Sharks, com suas respectivas acompanhantes, querem humilhar os seus desafetos na pista de dança. Bernstein, inflamado com a sua vontade prometéica de revolucionar o formato musical da Broadway, dotou essa passagem de compassos estranhos ? 5/4, 6/8 e um 25/6 (!). Os dançarinos sofriam para sincronizar suas danças, acostumados a sapatear no compasso básico e (quase) universal de 4/4. Noutro momento, o refrão da música mais conhecida de Amor Sublime Amor ? ?América? ? alterna entre as métricas de 6/8 e 3/4, certamente incomum pra uma música considerada popular.

Outra peculiaridade de Amor Sublime Amor é o emprego insistente de trítonos no seu score, um intervalo musical onde três tons inteiros são tocados em sequencia ou simultaneamente, formando um acorde. O trítono era conhecido como o ?diabolos in musica? na Idade Média, banido pelas autoridades religiosas por ser excessivamente dissonante. No musical, os trítonos são associados principalmente aos momentos de tensão e drama. Aplicações famosas do trítono são o riff de introdução de ?Black Sabbath?, da banda Black Sabbath ou o tema de abertura do Simpsons, escrito por Danny Elfman (autor da trilha de Batman, de Tim Burton).

A gravação original da trilha de Amor Sublime Amor foi feita três dias após a estreia do espetáculo em Broadway, mas é a gravação de 1961 que é considerada a versão definitiva do musical. Já na terceira idade Bernstein revisitou a sua obra-prima com a Filarmônica de Israel, conduzindo-a (pela primeira vez!) numa gravação conhecida como a versão ?operática? de Amor Sublime Amor. O álbum ganhou um Grammy e o documentário que o seguiu ? The Making of West Side Story (1985) ?, produzido pela BBC, ganhou um BAFTA.

Dizem que a frustração da vida de Leonard Bernstein foi não ter escrito a Grande Ópera Americana. (A honra vai para Porgy e Bess de Gershwin). No lugar dela escreveu o grande musical americano: Amor Sublime Amor. A história dele acaba mal, mas não para Lenny e os seus colaboradores. Numa carta endereçada à Felícia, sua mulher, Bernstein disse que Amor Sublime Amor ?era o último show que vou fazer?. Os estresses envolvidos na produção do espetáculo deixavam-no exausto e deprimido, fora o medo de fracassar; a sua opereta Candide (1956), apesar de elogiada, foi um fiasco... Mas Murphy ficou na dele. ?Muitas das grandes realizações do mundo foram realizadas por homens cansados e desanimados, que continuaram a trabalhar?, disse um anônimo inspirado. Bernstein, Robbins, Laurentis e Sondheim passaram por isso, e tiveram a honra de gravar os seus nomes na história do teatro e do cinema.




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