Maravilhas do Cinerama
Cinema

Maravilhas do Cinerama


por João Luiz Vieira
São Paulo, em algum momento das férias de verão de 1962. Como sempre acontecia, lá estávamos, meu irmão, minha mãe e eu, aproveitando as férias do início do ano entre o sítio dos meus avós nas cercanias de Vila Galvão, então área rural dos arredores da capital e o centro da cidade, onde moravam um tio e primos. A ida aos cinemas do centro era, como sempre, o programa obrigatório quando, a pé, e numa área relativamente pequena, cobria-se um trecho onde se encontravam verdadeiros palácios de cinema, maiores e mais luxuosos do que os que conhecíamos no Rio de Janeiro.





















Sistema "Cinerama" com três projeções simultâneas .

Ipiranga, Art-Palácio, Paissandu, República, Windsor, Normandie, Olido, Marrocos... os nomes evocavam grandiosidade, exotismo e fausto. Mas nenhum deles oferecia os prazeres da experiência sensorial possibilitada pelo Cine Comodoro, situado na Av. São João 1462, que, desde sua inauguração em agosto de 1959, exibia filmes no formato Cinerama e atraía verdadeiras multidões para suas sessões, alardeadas na sua fachada de colunas em pastilhas, como ?o espetáculo que revolucionou o mundo das diversões?. A certeza de estar vendo algo completamente novo em termos de imagem e som só possível naquele cinema, era prometida pela publicidade impressa dos anúncios de jornal que advertia ser aquele espetáculo ?exclusivo do Cine Comodoro... em nenhum outro lugar da cidade, do estado, do Brasil, você poderá vê-lo!?.










Foto do filme "Isto é Cinerama".

Pois bem, em mais uma dessas excursões ao Comodoro ? ali já havíamos assistido em 1959 ao filme inaugural do processo, Isto É Cinerama (This is Cinerama, 1952), completamente envolvidos por aquelas novas dimensões de imagem e som (seguido, nas próximas férias, de Cinerama Holiday, de 1955) uma bela surpresa nos aguardava, especialmente os cariocas. O formato narrativo do Cinerama era sempre o mesmo: documentários de viagens (travelogues), apresentando vistas panorâmicas de locais para nós distantes, aqui e ali pontuadas por seqüências que maximizavam o efeito de realismo imersivo proporcionado pela tela gigantesca, com 146 graus de curvatura ? que dava ao espectador posicionado mais à frente e no meio da platéia, uma sensação forte de participação física inédita no cinema até então. Não há como esquecer do trenzinho da montanha-russa de Coney Island que abria o primeiro filme, despencando lá do alto no momento exato em que os três projetores sincronizados formavam toda a imagem na tela e o som estereofônico multidirecional também se espalhava pela sala inteira. Passeios de gôndola pelos canais de Veneza ou as inúmeras seqüências de vôo sobre paisagens como o Grand Canyon ou os Alpes suíços faziam com que uma simples ida a São Paulo se transformasse num verdadeiro passaporte para o mundo, pelo preço modesto de um ingresso de cinema. Isso é que eram férias de verdade, não tínhamos qualquer dúvida.

Mas algo de muito especial nos reservava um terceiro travelogue do Cinerama, sedutoramente e na mesma linha dos filmes anteriores, intitulado As Sete Maravilhas do Mundo (Seven Wonders of the World, 1956). Como nos dois primeiros filme, havia um prólogo, projetado só com um projetor (o do meio) com a tela reduzida a 1/3 do tamanho total da imagem e com as cortinas abertas apenas nesse quadrado de imagem. Quem aparecia nessa imagem menor era o produtor do filme, o jornalista dublê de viajante-aventureiro Lowell Thomas, que falava e mostrava através de ilustrações as sete maravilhas do mundo antigo, como o farol de Alexandria, os jardins suspensos da Babilônia, a colossal estátua de Rodes. A última dessas maravilhas era, claro, a única que sobreviveu até os nossos tempos: a pirâmide de Gizeh, no Egito, junto com a Esfinge e as outras duas pirâmides ? pretexto para que o filme realmente começasse, com a abertura gradual das cortinas à medida que os outros dois projetores entravam em funcionamento sincronizado, formando o vasto panorama à nossa frente.
Depois dessas primeiras imagens no Cairo, um vôo rasante sob as pontes do East River, passando pela Estátua da Liberdade, nos levava direto de Nova York para a América do Sul e... as Cataratas do Iguaçu, vistas lá de cima, enchiam a tela e o nosso peito de orgulho pelo passeio aéreo em terras brasileiras. Mas, em seguida, com a respiração em suspenso e ainda não refeito da emoção anterior, num simples corte, o avião do Cinerama estava... no Rio de Janeiro, sobrevoando a Baía de Guanabara, num plano que, lembro bem, começava exatamente por trás do Corcovado, circundava o Cristo Redentor e avançava sobre Botafogo e o Pão de Açúcar. Não lembro mais o que a voz do narrador descrevia, mas, com certeza deveria ser algo sobre o carnaval e a beleza da cidade, maravilha da natureza... O orgulho brasileiro agora ganhava contornos especiais, matizados pelas imagens do Rio exibidas pelo Cinerama, em São Paulo. Como havia sempre uma disputa bairrista entre os primos, em geral alimentada por discussões entre os adultos sobre lugares-comuns na rivalidade Rio-São Paulo, meu irmão, paulista, e os demais primos, tiveram que engolir o fato de que, sim, você só poderia ver o Cinerama em São Paulo, no Comodoro ? mas, em compensação, na tela gigantesca, as imagens eram apenas do Rio...
O cinema, antecipando em mais de cinco décadas esta recente eleição tão noticiada, e através dessa tecnologia pioneira desenhada no início da década de 50 para enfrentar a concorrência da televisão, já havia selecionado o Corcovado como local digno de figurar numa lista de maravilhas do mundo moderno.
Texto publicado na revista eletrônica Cinética, de crítica de cinema, editada por críticos independentes.



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