O pianista, Francisco José Gorga, paulista de Porangaba, também tinha algo a dizer antes de tocar: ?Tenho o prazer de executar para senhoras e senhores assistentes, dois números musicais. Primeiro, uma valsa de Chopin, e depois, em arranjo de minha autoria, ?Quero que vá tudo para o inferno?, de Roberto Carlos. Tocava, a platéia aplaudia e começava o filme. O ritual se repetia desde 1964, quando o cine Ouro (1700 lugares) passou por uma reforma que lhe deu a aparência de um prédio colonial, decorado com motivos de Ouro Preto. Ostentava imitações de estátuas do Aleijadinho, vigas de madeira no teto, lembrando construções antigas, tapetes grossos e cópias de janelas e portas dos antigos sobradinhos mineiros.
No início dos anos 70, mesmo sendo um dos cinemas mais baratos da cidade e geralmente apresentando reprises ou filmes de classe B, o cine Ouro ainda tinha um toque de nobreza ? o gerente estava sempre de smoking ? apropriado para a cerimônia de um número musical ao vivo. O professor Gorga se sentia bem ali. Estudou na Itália, enfrentava o público desde 1925, ano em que tocou pela primeira vez, no cabaré Scala, passando, também, por teatros e rádios de vários estados brasileiros. Para ganhar os ?900 cruzeiros? mensais que o cinema lhe pagava, tinha versatilidade bastante para tocar de tudo (mas sempre de acordo com o filme em cartaz) e paciência de sobra para saber que nem sempre gostavam dele. ?Chega!?, gritou-lhe uma vez um espectador, entre um número e outro. ?Mas que bela educação!?, desafiou o pianista. A platéia aplaudiu. E ele tocou mais uma vez. Foi o único incidente que o envolveu em anos. ?O público que me escuta não tem obrigação de bater palmas. Mas, se escuta, é porque tem algum sentimento em relação à música e por isso nos entendemos quando toco?, disse o pianista.
Alto, grisalho, terno bem talhado, unhas bem feitas, Gorga falava com a voz polida dos grandes cavalheiros. Ele era fiscal de conservatórios da ?Comissão Estadual de Música? e, além de piano, também ensinava violoncelo, harmônica, violão, clarinete e pistom. Escrevia muito em jornais, mas gravou muito pouco (uma única composição sua ?Choro em Lá Menor?, em 1946). Ele não parecia muito preocupado com sua posteridade. Casado, pai de um filho, só lamentava que o ensino de música, que ele analisou em muitos artigos, era muito fraco no Brasil. Glória? Não fez parte de suas ambições. Fortuna? Também não. E aplausos dos freqüentadores do cine Ouro? De modo algum. Solitário na sua profissão, último representante de uma espécie extinta, sabia exatamente até onde ia a sua arte: ?Toco para uma única pessoa ou para uma casa lotada. Na verdade, eu toco sempre para mim mesmo?.
Fonte de pesquisa: Revista ?Veja? (1971) - Foto de Teo Nunes