Garantiram-me que Oswaldo Brandão, o grande técnico de futebol, foi porteiro do cine Santa Helena, na Praça da Sé. Não se pode confundir o Santa Helena, no Palacete Santa Helena, com seu concorrente Cinemundi, que ficava ao lado e num piso inferior. Nem se pode confundir também a época em que o Brandão dirigiu o Palmeiras com o período em que comandou o Corinthians. Este foi o seu verdadeiro período de glória. A ele, diga-se, é atribuída uma resposta antológica a um repórter esportivo que lhe perguntara como, afinal, vira determinada partida: ?Com os olhos?, disse o arguto Brandão.
O circuito dos cinemas populares concentrava pessoas que vinham dos bairros para passear no Centro Velho. Era um grande cruzamento de gente, idéias, angústias, esperanças e alegria por poder passear pela região dos grandes arranha-céus. Muitas pessoas ficavam pelo meio do caminho nos sábados à noite, ou nas tardes de domingo, atraídas pelos baixos preços dos cinemas periféricos do centro, que apresentavam dois filmes pelo preço de um. E, de quebra, além dos trailers, um capítulo de seriado, às vezes Zorro, outras Capitão Marvel ou Super-Homem. Uma baciada oferecida para quem vinha da Mooca aos cines Roma e Santo Antônio, na Rua da Mooca. Quem vinha da Penha e de toda a região Leste pelas avenidas Celso Garcia e Rangel Pestana, preferencialmente de bonde, podia optar pelo Universo ou pelo Piratininga. Este ostentava o garboso título de maior cinema do Brasil. Depois, foi convertido em estacionamento (se o Mazzaropi soubesse...). Quem viesse pela Rua do Gasômetro podia descer no Brás Politeama, instalado num belíssimo prédio do começo do século, com pátio interno. Era possível continuar até o Itapura, bem ao lado do Parque Shangai, mas aí era preciso ter dinheiro. O cine Itapura fazia parte do circuito MGM, por isso era mais caro e só apresentava um filme por vez. Às vezes valia a pena como, por exemplo, para assistir a Quo Vadis, com Robert Taylor e o grande Peter Ustinov no papel de Nero.
Pouca gente se arriscava a entrar no cine Jóia, na Praça Carlos Gomes, bem pertinho da Avenida Liberdade. Era o cinema japonês, e, em plenos anos 1960, ninguém se arriscava a ver um filme de língua desconhecida, num tempo em que poucos sabiam quem era Toshiro Mifune ou Akira Kurosawa. Para os que desciam dos ônibus fumacentos na Praça da Sé, havia a alternativa de pegar um filminho no Alhambra, em plena Rua Direita, ou prosseguir até o Anhangabaú. Lá estavam os populares: de um lado o Nilo e, de outro, o Dom Pedro II. Este, no térreo de um velho palacete todo decorado, era originalmente um teatro com cadeiras de madeira sem estofamento. Afinal, as estofadas eram reservadas para os cinemas de elite.
O povo que vinha da Zona Norte desembarcava na Avenida Cásper Líbero, bem em frente da sede do jornal A gazeta. Na esquina da Rua Santa Ifigênia havia o cine Paratodos, num canto; no outro, ficava ? e ainda fica ? a igreja que leva o nome da rua, já foi catedral de São Paulo e guarda até hoje, nas paredes, os buracos de bala da Revolução Paulista de 1932. Na outra ponta, o prédio do Quarto Comando Aéreo, ao lado do hotel que encosta-se ao Viaduto Santa Ifigênia.
Tinha cinema para todo lado, todo preço e vestimenta. Com terno e gravata, era possível entrar no cine República, ou no Ritz, ou mesmo no Normandie, na Rua Dom José de Barros. Com ?roupa comum?, era possível entrar no Broadway, ou no Oásis, ambos na Avenida São João, onde ficava também o Metro ? mas, para freqüentar este último, só de fato completo, como diziam os velhos portugueses da cidade.
Os cinemas populares, que cercavam as salas nobres da Cinelândia e se misturavam a elas, eram carinhosamente chamados de ?pulgueiros?. Nunca descobri exatamente por qual razão. Talvez pelas pulgas que insistiam em permanecer sessão após sessão no escuro. Cá comigo, porém, acredito que isso se devia mais às cadeiras de madeira, às bombonières com guloseimas baratas, aos cartazes anunciando sessões duplas, aos banheiros limpos mas mal conservados, aos lustres provincianos. Enfim, à falta de requinte das salas destinadas aos que trajavam paletó e gravata. Nada de piano ou música de câmara antes do filme, apenas o burburinho de pessoas ansiosas para saber como o herói do seriado se safaria da última maldade do bandidão. Eram salas humildes, mas charmosas, a maioria delas alcançadas por transporte público, e ninguém se envergonhava de descer defronte delas trazido por um bonde ou um ônibus da CMTC ? a velha Companhia Municipal de Transportes Coletivos. Afinal, naquela época, as pessoas ainda eram transportadas com dignidade por motoristas e cobradores de quepe, paletó e gravata.
Publicação autorizada pela editora. Texto do livro ?Meu velho centro ? Histórias do coração de São Paulo?, de Heródoto Barbeiro, da série Trilhas da coleção Paulicéia, da Boitempo Editorial ? SESC ? 2007