Cinema
Filmes de culto I: "A Clockwork Orange" por Filipe Lopes
Stanley Kubrick deixou-nos um legado extraordinário em quase cinquenta anos de carreira como realizador, no entanto, desde a sua primeira longa metragem, "Fear and Desire" (1953), até "De Olhos Bem Fechados" (1999), dirigiu bastantes menos filmes do que esse quase meio século poderia fazer supor. Feitas as contas, foram treze as obras que o imortalizaram, filmadas com intervalos cada vez maiores, distando a última, doze anos da penúltima ("Nascido Para Matar" - 1987) e esta, sete anos da anterior ("Shinning" - 1980). Esse espaço temporal é demonstrativo da forma como Kubrick se entregava ao trabalho, passando cada um dos seus filmes, sobretudo os últimos, por um processo de gestação bastante longo, em que cada plano era pensado ao pormenor e cada take poderia ser repetida até à exaustão. Cineasta de um perfeccionismo extremo, transmite nas películas que fez as suas próprias preocupações, sobretudo sociais, sempre com algum desencanto sobre a vida e um olhar cínico de quem não admite cedências aos interesses instalados dos Grandes Estúdios e da Indústria Cinematográfica americanos. À sua independência não é alheio o facto de se ter isolado em Inglaterra grande parte da sua vida, país onde faleceu a Março de 1999, meses antes de ver estreada a sua derradeira obra, o já referido "Eyes Wide Shut" ("De Olhos Bem Fechados"). Deixou por concretizar, pelo menos, dois projectos: um sobre a vida de Napoleão Bonaparte, e outro, "A.I. - Inteligência Artificial" (2001), que acabou por ser feito por Steven Spielberg, seguindo, como foi amplamente noticiado, a sua vontade.
A crítica é unânime em considerar Stanley Kubrick um realizador genial e "2001, Odisseia no Espaço" (1968), é tido pela generalidade da comunidade cinéfila, como a grande referência da sua filmografia e uma das maiores obras-primas da História do Cinema, embora não sejam de desprezar (muito pelo contrário) títulos como "Dr. Estranho Amor" (1964), "Barry Lyndon" (1975), "Shinning" ou "Nascido Para Matar". 1971 é o ano que vê chegar às salas de cinema uma das películas que mais celeuma provocou, um pouco por todo o lado, sobretudo nos meios mais conservadores: "Laranja Mecânica", cujo cartaz de promoção anunciava como uma história de sexo, ultra-violência e Beethoven. A década de 60 do movimento hippie e do flower-power estava ainda viva na memória de todos, ao american way of life tradicional contrastava a máxima sex, drugs & rock'n roll, as manifestações contra a Guerra do Vietname sucediam-se e o Festival de Woodstock ganhara, entretanto, contornos de lenda. Mas o mundo, mesmo neste contexto, ainda não estava preparado para receber um fortíssimo murro no estômago em forma de filme, que analisava a sociedade de uma forma cruel e a alertava para os perigos existentes no caminho por que estava (hoje, ainda mais) a seguir. Uma coisa é certa, a sua estreia recolheu tudo menos opiniões consensuais: se uns defendiam a sua estética formal ou a mensagem que lhe estava subjacente, outros condenavam as cenas de sexo e violência brutais nele contidas, responsáveis, inclusivamente, pela proibição da sua exibição em vários países, com o Reino Unido à cabeça. Ainda assim a Academia nomeou-o (!!!) para alguns dos Oscar mais importantes, incluindo o de melhor filme que perdeu para "The French Connection" ("Os Incorruptíveis Contra a Droga"). Injusto, considero eu, mas a atribuição das estatuetas douradas e até mesmo a nomeação para as diferentes categorias, não têm, ao longo da história, primado propriamente pela justiça nas decisões (com algumas excepções, claro, como a justíssima vitória de "Million Dollar Baby" na última cerimónia). De qualquer modo a divisão que "Laranja Mecânica" provocou, aliada à interdição a que foi sujeita, fez dela uma película marginalizada, pelo que rapidamente se transformou num extraordinário fenómeno de culto que viu crescer estrondosamente a sua legião de fãs à escala planetária.
O filme começa com um rectângulo vermelho a ocupar todo o espaço da tela ao som latejante do tema musical principal (uma música electrónica de inspiração claramente Beethoveniana). Depois surge-nos, em grande plano, a face de Alex (um Malcolm McDowell completamente fabuloso!), o protagonista e fiel narrador da história, com um sorriso malévolo estampado no rosto. O plano abre à medida que a câmara se afasta, a música continua a golpear a nossa cabeça (que grande trabalho fez Walter Carlos), e a narração começa a ser feita no tom lacónico que estará presente até final. É nesta altura que nos são apresentados os seus compinskas, bem como o Korova Milk Bar, local habitualmente por eles frequentado e onde costumam beber um leite vitaminado, que funciona como estimulante para mais uma noite de ultra-violência. A sequência inicial dá, de forma sublime, o mote para mais de duas horas de genialidade pura, com os símbolos e os seus significados habituais a serem completamente subvertidos, tal como as noções correntes sobre o que é o bem ou mal. Como já deve ter reparado, caro leitor, não é minha intenção iludi-lo, dizendo-lhe que é um filme fácil; trata-se, isso sim, de uma obra de difícil visão e digestão. Para começar, por causa da brutalidade de algumas cenas de violência e/ou sexo. Este seria, certamente, um daqueles títulos que teria a inevitável bolinha vermelha no canto superior direito do ecrã, caso passasse na televisão portuguesa. Mas se está à espera de ver quilolitros sangue e vísceras espalhadas pelo chão e pelas paredes, está muitíssimo enganado. A violência de "Laranja Mecânica" é bastante mais psicológica do que de qualquer outro tipo, embora contenha cenas que são de uma extrema crueza visual. Mais dois apontamentos que fazem, deste, um filme diferente do habitual - a forma como as personagens interagem e a linguagem por elas utilizada. Relativamente ao primeiro, digamos que esta obra parece uma magnífica e grandiosa encenação teatral, sendo a tela o seu espaço cénico. Nem sempre este estilo se adapta bem ao cinema, mas, neste caso particular, não só é o mais adequado, como o resultado final roça a perfeição. Quanto à linguagem, ela é, no mínimo, tão estranha para nós, como aquela que os adolescentes de hoje usam seria para um aristocrata do século XVI. Se palavras como compinska (amigo, companheiro), atolchocar (atacar), milicem (polícia) ou crastar (roubar) nos são estranhas, tal deve-se ao facto de elas não existirem, de todo, mas terem sido criadas por Anthony Burgess, o autor do romance homónimo do qual foi adaptado o filme. Bem, se quisermos ser preciosistas, as quatro palavras que usei como exemplo são, na verdade, já uma recriação, pois fazem parte da adaptação portuguesa e não do original em língua inglesa. Refira-se, como curiosidade, que Burgess criou, já bem mais recentemente, a linguagem utilizada pelos homens primitivos de "A Guerra do Fogo" (1981) de Jean-Jacques Annaud. Pois é! Para quem não sabia, a comunicação entre aqueles homens era muito mais do que simples grunhidos sem nexo.
Para finalizar, é bom não esquecer que, desde a data em que "Laranja Mecânica" estreou, até hoje, passaram já mais de trinta anos. Mas é extraordinário constatar que, apesar de o tom futurista dos cenários e da indumentária poderem parecer um pouco datados e conotados com os Anos 60, a história, a problemática, a mensagem e a discussão que ela provoca são profundamente actuais, talvez até mais do que naquela época. Concluo, apenas dizendo que este é O FILME da minha vida; aquele que me fez, com a tenra idade de treze anos (ai, se a minha mãe soubesse…), olhar para o cinema de outra forma e a adorá-lo de modo (quase) incondicional. Parece-me não haver melhor elogio do que este! Aluguem-no ou comprem-no, porque é essencial em qualquer vídeo ou DVDteca!
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