Cannes: o cinema estará em crise?
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Cannes: o cinema estará em crise?



Na verdade existem três festivais que se concentram em Cannes em Maio. O festival de cinema das estrelas e dos filmes, com as suas diferentes secções competitivas; o mercado do filme que é uma feira no sentido mais puro do termo. E o ambiente de algum glamour e muito voyeurismo que anima a cidade, toda ela virada para o seu festival e toda a sua economia centrada nos milhares de visitantes que fazem a glória de Cannes.



Na primeira vertente a selecção do festival de Cannes parecia uma parada de laureados: Ang Lee, Tarantino, Alan Resnais, Almodóvar, Von Trier, Haneke, Campion entre muitos outros da primeira linha dos realizadores mundiais. Além dos que não se candidatavam aos prémios como Amenábar, Gilliam e Gondry. Todos eles com os seus filmes contribuíram para um grande festival, mesmo que as críticas não tenham sido entusiásticas. Claro que entre o revivalismo documental ficcionado de Ang Lee, a História alternativa da Segunda Guerra Mundial proposta por Tarantino, a grande depressão pessoal exposta em tela por Von Trier, o dramalhão metafórico de Almodóvar sobre o cinema ou a provocação ao fundamentalismo católico vinda do Oriente de Park, dividiram os críticos, mas nenhum se destacou a ponto de se posicionar como vencedor incontestável. Mas todos eles entre muitos outros são a prova de que o Cinema está longe da exaustão e afastado das crises.
O palmarés reconheceu apenas a não existência de um claro vencedor, distribuindo como é hábito prémios a quase tudo quanto era filme. Talvez que as maiores desilusões acabassem por ser a ausência de Almodóvar de Ang Lee da lista dos premiados.
Como destaque patriótico do palmarés, a talvez inesperada vitória de Salaviza na curta-metragem, que dá um novo alento a este formato cheio de futuro e uma visibilidade diferente ao cinema português que em Cannes girava em torna de Manoel de Oliveira e pouco mais. Uma nota curiosa nos realizadores seleccionados é talvez a falta de uma nova geração que se imponha e o peso dos habitués na secção oficial do festival. Por isso mesmo as secções Un Certain Regard e Quinzaine constituem esses espaços de afirmação e rampa de lançamento de cineastas em início de carreira e por isso são sempre secções onde a descoberta está garantida e as surpresas são invariavelmente agradáveis, ainda que por vezes perturbadoras e polémicas. Não por acaso os prémios contemplam cinematografias bem menos conhecidas como é o caso da Grécia ou da Roménia e um absolutamente inesperado filme iraniano. Pena é que fora do circuito dos festivais estes filmes dificilmente encontrem o público.



No mercado do filme a crise parece ter sido sentida de forma mais intensa. São muitos os vendedores, menos os compradores e os preços, como sabem os economistas, tendem a baixar nestas situações. A par com o facto incontestável de que a qualidade dos filmes tem vindo a descer de nível com uma enorme maioria dos filmes ou dos projectos visionáveis na fasquia da mediocridade. A necessidade de produtos audiovisuais cresce, mas a oferta manifesta ausência de ideias, repetição de clichés, e uma concepção fast food do cinema. Este Cannes paralelo que vive nas caves do Riviera e nas traseiras do Palais é um mundo sombrio de negócios e de industriais para quem o cinema é apenas um produto de consumo e não mais uma arte. Com mais de trinta salas (ou espaços reconvertidos em salas) a debitar filme, muitos são chamados mas poucos os escolhidos. Não há grande margem para quem, como é o caso do Fantasporto, vem a este mercado procurar "aquele" filme especial que poderá ter passado à margem. Ver cinema neste sistema de fast food é uma corrida entre salas, entre excertos de filmes e entre contactos com os especialistas na ânsia de que um em cada cem mereça o convite para o Porto.
Neste mercado-feira, as majors auto-excluem-se. Refugiam-se nas suites dos hoteis de charme da Croisette como o Carlton ou o Majestic, preenchendo as fachadas luxuosas com os seus futuros sucessos. As empresas de topo evitam os mais pequenos, preferem a discrição dos apartamentos e os acordos celebram-se à mesa com champanhe ou não estivéssemos em França.
O brilho dos stands, os gadgets promocionais, as vistosas promotoras e os cocktais não escondem o reverso do cinema. Oito dias depois do começo toda esta tenda está já desmontada e embalada. Os negócios estão feitos e agora é o tempo de tentar rentabilizar o negócio. Business as usual, com filmes que tanto podem custar 500 euros como 250 mil ou mais, para o mercado português que é apenas uma migalha do mercado. No entanto convém realçar que os distribuidores portugueses parecem ter feito boas compras, garantido a aquisição dos filmes mais badalados e polémicos do festival pelo que os espectadores portugueses poderão em breve avaliar a selecção.



A terceira Cannes é uma cidade que vive do cinema. As centenas de hotéis, mesmo os de duvidosa reputação, estão completos e os preços são mesmo exorbitantes. As casas comerciais respiram cinema com os cartazes do festival, os tapetes vermelhos à entrada com a palma dourada, as montras adornadas com símbolos do cinema e sobretudo os restaurantes onde os visitantes em duas semanas garantem o rendimento anual dos felizes proprietários. Toda Cannes ganha, até a Câmara Municipal que inventa uma taxa de permanência de 80 cêntimos per capita por noite. Os mais dados à aritmética poderão fazer as contas. 35000 visitantes vezes 10 dias vezes 80 cêntimos é um apetecível imposto. Para uma vila de pescadores como ironicamente lhe chamava Walter Salles, o cinema é um investimento.
Mas esta Cannes acarinha também o festival porque lhe dá um colorido inigualável na Croisette e na Rue d’Antibes, participa na parada das estrelas pela passadeira vermelha com paciência de horas e grande entusiasmo e por isso esta Cannes é parte integrante do sucesso do festival. É caso para nos interrogarmos como é possível tanta gente desocupada durante a semana em pleno mês de Maio, disponível para fazer avenida.
Esta Cannes é dos grandes iates ancorados na marina, muitos deles sedes de empresas. Das concorridas festas nos restaurantes de praia, dos hotéis míticos como Carlton ou Majestic, do desfile dos carros de colecção ou de ostentação, das filas este ano um pouco menos extensas de cinéfilos ansiosos por um lugar, ou das dezenas de infelizes de cartão ao peito em busca de um bilhete que lhes permita o milagre do acesso ao Palais. Não foi esta Cannes que esteve em crise.

Viva Cannes, viva o Cinema e até para o ano.



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